Como é um hábito bastante enraizado, decidi partilhar esta crónica do Henrique Raposo no Expresso, especialmente para os mais novos que felizmente não passaram por alguns dos factos aqui referidos.
Bom fim de semana e bons negócios
Boa tarde,
Começo esta newsletter recordando uma crónica que escrevi há meses sobre o livro de Pedro Boucherie, a história dos anos 80.
Boucherie “apresenta uma visão iconoclasta do país, ou seja, uma visão luminosa e otimista de Portugal e isso choca com a preguiça neoqueirosiana da nossa elite cultural. O símbolo máximo desta preguiça foi talvez Vasco Pulido Valente, que vendeu durante décadas a mesma crónica apocalíptica: Portugal é uma choldra, é impossível reformar este país, nada melhora neste país (...) Há uma patine snobe entre os portugueses e a elite, que se comporta muitas vezes como uma elite estrangeira que tem de tutelar estes indígenas, os tugas (...) o Portugal democrático tem sido um sucesso. Não há comparação possível entre o país onde eu nasci, que tinha saído há segundos do terceiro mundo, e o país onde as minhas filhas nasceram, que está por direito no primeiro mundo”.
Contudo, “devido à hegemonia sufocante da choldrite subqueirosiana, nós somos o único país do mundo que não tem uma narrativa nacional para encaixar os factos positivos sobre nós próprios. Nem a esquerda nem a direita conseguiram criar uma narrativa luminosa sobre os 50 anos de democracia, porque ambas adoravam a soberba neoqueirosiana (...) E isso agora deixa-nos numa posição delicada: quando vem dizer que isto nunca muda, que é preciso uma limpeza, que a democracia tem sido uma desilusão, o Chega está só a prosseguir a narrativa mais apreciada pelas elites. O que soa estranho ao ouvido dos portugueses não é a narrativa pessimista e reacionária do Chega, que foi a narrativa do Pulido Valente durante décadas; o que soa estranho é a ideia aqui expressa por Boucherie: Portugal é uma história de sucesso sob qualquer ponto de vista”.
A iconoclastia também pode ser otimista, solar, positiva.
Quando agora vemos os cartazes do Chega a dizer que PS e PSD (isto é, o Portugal democrático) falharam nos últimos 50 anos, poucos são aqueles que têm currículo para dizer que nunca aceitaram este pessimismo, um pessimismo estético e neoqueirosiano que dominou as grandes narrativas e os grandes jornalistas ou cronistas.Talvez agora as pessoas compreendam melhor porque é que eu era tão crítico de Vasco Pulido Valente. O jornalismo não é literatura ou somente um estilo. Se no romance eu tenho a liberdade para me desligar da realidade e da exigência de apresentar um retrato analítico perfeito, no jornalismo não tenho essa liberdade e a escola VPV/Independente pecou sempre neste aspeto, como, de resto, salientou uma jornalista desta casa num livro importante sobre a nossa história recente.
Mas vamos lá a factos que confirmam a tese de que o Portugal democrático e europeu é uma história de sucesso tendo em conta a comparação 2025-1974.
1. A transição para a democracia podia ter corrido mal. Mas o certo é que em 1982 a revisão constitucional de Balsemão mandou os militares de volta para os quartéis. Quando hoje em dia há receio em relação à candidatura de um almirante a Belém, é por causa disto: entre 74 e 82, Portugal não foi uma democracia plena, estava tutelada pelo conselho da revolução dos militares.
2. A esquerda revolucionária foi um problema até muito tarde; as FP 25 assassinaram mais gente per capita do que qualquer outro grupo terrorista esquerdista da época.
3. Após Camarate, a direita podia ter voltado a uma posição insegura e por isso agressiva.
4. A integração de 700 mil retornados podia ter sido uma tragédia violenta.
5. A nossa entrada na CEE não estava garantida, e muito menos a nossa posterior adesão ao Euro. Aliás, este é um dos factos mais importantes deste trajeto positivo de Portugal. Em 1960, as exportações eram 14% do PIB. Neste momento são quase 50%.E repare-se que exportamos em moeda forte (e não com a competitividade falsa do Escudo baixo) há vinte e cinco anos. No ano 2000 as exportações representam 28% do PIB. Não se fala, nem de perto nem de longe, o suficiente sobre este feito da nossa economia. Os arautos da desgraça neoqueirosiana diziam, ao lado do PCP, que isto do Euro era um erro e que o Portugal da maçã com bicho jamais exportaria com uma moeda forte.
6. Como recorda Boucherie, podíamos não ter tido tantos fenómenos libertadores na cultura como as Doce ou o Herman.
7. Tínhamos os rios mais poluídos da Europa, e agora não. Eu vivi ao pé do mais poluído de todos, o Trancão. Sabem o que fica agora no Trancão? O Parque Tejo. Toda a zona oriental da Grande Lisboa é mesmo uma dos maiores exemplos da mudança positiva do país. De forma geral, no cuidado com o ambiente nem sequer há comparação possível entre 1974 e os nossos dias. Temos mais de 400 praias com bandeira azul. Nos anos 70, Portugal não tinha qualquer tratamento do lixo, ia tudo para lixeiras. Agora 12% do lixo é reciclado, 17% sofre uma valorização orgânica, outros 17% uma valorização energética e o resto vai para aterro.
8. Crescemos economicamente, basta ver a evolução do nosso PIB per capita. Podia ser mais? Claro que podia, mas isso não quer dizer que não crescemos e, olhando para o gráfico, fica claro que estamos há alguns anos num momento positivo.
9. Na mortalidade infantil, não há comparação possível. Em 1974, em 1000 bebés até um ano de vida, ainda morriam 34 bebés. Agora morrem 2 em 1000. Querem mais? Em 1974, só 61% dos partos eram realizados em ambiente hospitalar. O resto ainda nascia em casa à moda antiga. Em 1979, eu ainda nasci em casa no meu bairro clandestino às portas de Lisboa. Aliás vejam como era o meu bairro, igual a centenas de outros à volta de Lisboa, e tenham lá a coragem de dizer que não melhorámos. Da minha parte, confesso que fico comovido por duas razões. Primeiro, não me lembrava desta dureza, (já) não sabia que era assim tão mau, vivi ali em condições que até a minha memória apagou. Segundo, porque é inacreditável viver num espaço público ou numa cultura que é incapaz de reconhecer que melhorámos coletivamente, falta ao respeito porque quem vivia na verdade no terceiro-mundo; éramos um Cazaquistão do Borat e já não somos.
10. Temos um risco de pobreza absolutamente na média europeia. Ao contrário do que tantas vezes é sugerido, não somos dos piores ao nível europeu, estamos mesmo no meio.
No início do século XXI, depois das imensas obras de saneamento básico do tempo do cavaquismo, Portugal ainda tinha 3,3% da população sem sanita, autoclismo e banheira em casa: agora é apenas de 0,3%. Qual era o ponto de partida? Em 1970, mais de metade da população não tinha água canalizada e 70% não tinha esgotos. Em 1974, nos bairros de lata à volta da cidade de Lisboa, tivemos surtos de cólera - cólera! Anos antes, em 1967, tivemos cheias bíblicas nos bairros de lata que mataram pelo menos 700 pessoas.
Ainda se pode falar de pobreza energética das casas, mas mesmo aí melhorámos: 15% dos portugueses dizem que não conseguem aquecer a casa no inverno. No início deste século eram 36%.
Ainda há muita gente sem dinheiro para férias, sim, mas esse número está a baixar. No início deste século, 60% dizia que não tinha dinheiro para férias fora de casa. Agora é 35%.
11. A esperança média de vida subiu imenso. Os dados variam mesmo dentro dos site do Pordata, mas o certo é que sobem sempre. Há quem diga que era de 78 anos em 1974 e que hoje está nos 85. Há quem diga que era de 71 anos em 1981 e que agora é de 81 anos. E isto coloca-nos na parte da frente da Europa. Somos o 9.º país europeu com esperança média de vida mais elevada.
12. Na educação, o acesso da população não tem qualquer comparação. Em 1974, só 8% das crianças tinham acesso ao pré-escolar. Agora são 94%. A primária em 1974 ainda não total; só 85% chegava lá. O segundo ciclo atingia apenas 26%, agora é de 92%. O terceiro ciclo apanhava apenas 18%, agora é de 94%. O secundário era apenas para 5%. Agora são 90%. E o que dizer da faculdade? Em 1978 o país só tinha 81 mil estudantes universitários. Em 2024 eram quase 450 mil. De igual forma, o número de bolseiros no ensino superior também tem subido.
13. A taxa de abandono escolar tem caído sempre a pique; recorde-se que no início dos anos 90 ainda era cerca de 50%. O número dos"nem nem" já foi muito mais alto do que é hoje.
14. A sinistralidade na estrada – isto é, ausência de civismo – desceu imenso. E há mais carros. Neste momento, cerca de 4% das pessoas não têm dinheiro para ter um carro. No início do século eram 12%.
Seja qual for o ângulo, a história do Portugal democrático é uma história de sucesso. Devíamos olhar para isto mais vezes por uma questão de rigor, por uma questão de respeito por quem foi mesmo muito pobre, para termos uma esperança sólida e não um pensamento mágico e utópico, para nos vacinarmos contra o tremendismo apocalítico dos populistas. Não, ao contrário do que diz o Chega, o PS e o PSD – isto é, os governos democráticos dos últimos 50 anos – não são um fracasso dantesco.
Podiam ter feito melhor, podíamos ser todos melhores? Sim. Mas isso é outra conversa. Essa é uma conversa democrática e reformista normal que tem de partir dos sucessos reais e mensuráveis da sociedade portuguesa desde 1974.
O estranho, o que é mesmo absolutamente estranho, é só vermos um ex-político (Rui Rio) a dizer isto em público. O que é absolutamente ridículo é estarmos na prática nas mãos na narrativa do Chega mesmo contra o camião de factos que aqui deixei. A extrema-esquerda é incapaz de reconhecer as melhorias da governação de partidos pró capitalistas e pró europa. O PS é incapaz de reconhecer o trabalho das ADs, e a AD é incapaz de reconhecer o trabalho do PS. E, portanto, a história de sucesso do Portugal democrática não tem protagonistas.
Rir ou chorar? Como ainda estou em choque com o vídeo que descobri sobre o bairro onde nasci e vivi até aos dez anos, hoje será dia de chorar, confesso.
Um abraço e boa tarde,
Henrique
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